Resumo
Mitos Americanos, Ibéricos, Cristãos e suas narrativas em contextos Lusófonos: Instauração, Revisão, Reescritas e Recepção
O mito desempenha um papel fundamental na estruturação de todas as culturas, estando nas suas raízes e providenciando à humanidade modelos de interpretação da natureza e da história, ou mesmo articulando imaginários religiosos, filosóficos ou cosmogônicos. A transmissão dos mitos, colocada originariamente na encruzilhada entre oralidade e escrita, contribuiu para a formação das tradições literárias, sem se limitar apenas a essa função fundacional. É por meio da literatura que o mito revive, sofre adaptações, ressemantizações e questionamentos, como comprovam não só os ciclos épicos da antiguidade (Homero, Gilgamesh) ou os inúmeros comentários e interpretações dos textos sagrados, como também a recepção e o reaproveitamento do mito por parte da literatura de todas as épocas, de Ovídio a Goethe, aos clássicos da modernidade como o Ulysses de Joyce e Joseph und seine Brüder de Thomas Mann, até à contemporaneidade.
No Ocidente, compõe-se de vários conjuntos, relacionados, de um lado, à civilização de onde provêm, de outro, às culturas por onde se difundem. Por isso, podem se relacionar à cultura antiga, a exemplo da tradição greco-latina, ou a sociedades ameríndias, como os povos nativos habitantes do chamado Novo Mundo pelos europeus. Podem se mesclar a doutrinas de teor religioso, dada a circunstância de partilharem, mito e religião, uma visão sagrada de mundo.
Em qualquer uma dessas circunstâncias, a mitologia igualmente fecundou a produção literária, representada por discursos de distinta natureza, sendo um deles a epopeia, gênero que deu margem a criações que circularam antes da Era Cristã, no Ocidente e no Oriente. Não é exagero afirmar que todos os povos e, dentro desses, os distintos agrupamentos dispõem de seus relatos fundadores – mitos – que se convertem em narrativas de origem e epopeias. Entre os gregos, são notórios os exemplos de Homero (Ilíada e Odisseia) e Hesíodo (Teogonia), entre os hebreus, os livros do Pentateuco (Bíblia Hebraica), entre os sumérios, o Gilgamesh, entre os hindus, o Mahabharata, do qual faz parte o Bhagavad Gita. Se os casos citados representam os tempos antigos, vale relembrar os nomes que instauraram a modernidade, como Dante Alighieri, autor de A divina Comédia, e Luís de Camões, em Os Lusíadas.
Os de mais difícil circulação para além de seu espaço de produção são os que não contaram com o registro escrito, como se passa com as narrativas dos povos nativos da América, que ocuparam as chamadas Terras Baixas, ao contrário dos maias, que legaram, em língua quiché, o Popol Vuh. A circunstância de não circularem originalmente por meio do registro escrito (circunstância compartilhada com os poemas épicos de Homero, conhecidos primeiramente por intermédio da declamação) não os torna menos importante, e pesquisas contemporâneas, no âmbito da Antropologia e dos Estudos Literários, procuram recuperá-los, evitando deturpar suas características.
Na passagem do mito à epopeia, testemunha-se a construção de um gênero que, fiel às suas concepções, certifica a capacidade humana de fantasiar, criar, conferir significado à existência e à sociedade desde os produtos oriundos do imaginário. Assim entendida, a epopeia, consolidada como gênero literário em nossas tradições poéticas, afirma-se como uma forma transperiódica, ou seja, atravessa diferentes épocas e, nesse percurso, está continuamente sujeita a recriações, reformulações e revisões conforme as demandas de cada momento histórico. Mesmo na contemporaneidade, embora possamos considerar que as estruturas que definiram o gênero tenham se enfraquecido ou até desaparecido, o caráter épico, entendido como um adjetivo, persiste nas mais diversas mídias – do romance ao cinema – como um recurso expressivo central para as explorações do imaginário humano – suas questões, seus conflitos, grandes aventuras e lutas.
No mundo lusófono o entrecruzar-se de literatura e mito delineou uma produção fertilíssima que ultrapassa fronteiras e registros genológicos. No contexto europeu, vai desde as tágides camonianas, até à obra poética de Sophia de Melo Breyner Andresen e Eugênio de Andrade ou romances como O evangelho segundo Jesus Cristo de Saramago e O conquistador de Almeida Faria, sem esquecer uma parte considerável do pensamento de Eduardo Lourenço. Teologias políticas, como o Sebastianismo e o Quinto Império, que ressentem da influência veterotestamentária, tiveram uma enorme repercussão literária. No contexto brasileiro, estes e outros milenarismos são objeto de atenção em obras como Os Sertões, de Euclides da Cunha, ou Pedra Bonita, de José Lins do Rego. Mitos pertencentes a culturas não-europeias contribuíram inclusive para caracterizar a literatura brasileira nas várias etapas da sua formação e autoconsciência, como no Indianismo romântico, na literatura de cordel, na obra dos modernistas, com destaque para a Antropofagia, numa certa produção de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, onde a mitologia se torna porventura expressão e resgate das camadas mais marginalizadas da população, entre vários outros exemplos. Nas literaturas africanas, a recuperação da dimensão do mito também se presta à afirmação de identidades culturais, nacionais e de reivindicação de uma memória coletiva, através de cosmopercepções expressas em narrativas várias como as de José Luandino Vieira (Luuanda), Mia Couto (Estórias abensonhadas) e Paulina Chiziane (Niketche: uma história de poligamia).
No contexto contemporâneo, marcado pela consciência da vida no antropoceno e por ecologias pós-humanistas, a atenção ao mito pode tornar-se um interessante instrumento de abertura ao outro com perspectivas e resultados imprevisíveis. As culturas lusófonas neste sentido podem oferecer um ponto de vista privilegiado sobre relações, diálogos, cruzamentos e osmoses entre literatura e mito no âmbito do contacto com grupos étnicos ameríndios, africanos, asiáticos e oceânicos, também como forma de reparação e renegociação dos cânones literários em tempos pós-coloniais. Nesta perspectiva, assinalam-se trabalhos como o de Eduardo Viveiros de Castro e Ailton Krenak, ou propostas narrativas que venham sugerir uma compenetração cada vez maior entre escrita literária, reflexão política, etnografia e mitologias indígenas ou afro-brasileiras, a exemplo de Daniel Munduruku e Itamar Vieira Júnior.
Perante esse manancial, heterogêneo e potencialmente inesgotável, de temáticas o desafio desta secção situa-se em encontrar um denominador comum na atenção pela análise teórica e crítica sobre o mito e as suas relações com as formas literárias. Devido à polissemia que atualmente caracteriza o termo, achamos oportuno esclarecer que no presente contexto o mito não deverá ser entendido como lugar comum, crença errônea ou mistificação. Convidam se, portanto, os/as participantes para apresentarem comunicações sobre tematizações, reescritas e refuncionalizações do mito na sua acepção religiosa, etiológica ou metafísica, destacando-se os gêneros em que sua presença é mais evidente, como a epopeia, clássica, romântica e contemporânea. Por conseguinte, serão bem recebidas propostas intencionadas a explorar dentro das literaturas de todas as áreas do mundo lusófono questões como: reescrita e refuncionalização do mito clássico ou judaico-cristão, expressas em gêneros literários; mitologias europeias, clássicas e modernas, e não-europeias, populares ou eruditas; antropologia e mito; teorização do mito; mitos fundacionais; messianismos e milenarismos; temporalidades do mito; mitos da idade áurea e suas reformulações políticas, entre outras.
Prazo para envio de propostas: 30 de abril de 2025
As propostas devem ser enviadas para os e-mails de:
Rafael Brunhara (UFRGS): rafael.brunhara@gmail.com
Regina Zilberman (UFRGS; UEMA; FAPERJ/UFF): regina.zilberman@gmail.com; regina.zilberman@ufrgs.br
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